DIA 17 DE ABRIL DE 2013
SESSÃO ÀS 19:00 NA CASA DE CULTURA DE MARICÁ - CINECLUBE HENFIL
A sessão estava lotada e foi muito aplaudida!
Sempre que filmamos em uma locação sabemos que o pessoal daquela casa, bairro, rua, cidade vão estar esperando o momento de se ver ou ver seu espaço enquadrado. Não seria diferente em
Maricá e mais precisamente nos bairros de Ubatiba, Lagarto e Silvado, onde filmamos em julho de 2011. Então para vocês: crianças, pais, primos, amigos, família " Os Donos da Mata".
Mais histórias minhas inspiradas em Maricá.
Meu destino era o Nós do Morro
Luciana Bezerra
Editora Aeroplano 2011 - Programa Petrobras Cultural
Capitulo 5 - Maricá da Mãe
Chegamos juntos a Maricá toda a família para morar perto de meus avós. A casa estava mais bonita. Já que o pouco que tinha permaneceria na Rocinha, mas a separação ainda não estava declarada. Era preciso que meu avô acreditasse que a intenção dele
não era abandonar a família. Dormiu lá apenas naquele
fim de semana e foi embora. Ficou um tempo sem nos
ver. Acho que umas cinco semanas ou mais. Era um falatório na família minha mãe nervosa. Entendia tudo,
mas todos pensavam estar escondendo de nós o verdadeiro motivo da mudança. Quando minha mãe conversou
com a gente, nós e nossos primos já tínhamos adiantado
essa conversa por muitos dias. Todos tinham medo de
perder os pais. O ano de 1978 abalou de fato a família.
Meus primos, um ano antes, tinham perdido o pai em
um acidente de carro. Agora podia ser a nossa vez, pelo
menos era o que pensávamos naquele momento.
No Natal daquele ano, vi meu pai, mas na virada de ano
ele não estava com a gente. Era um direito da minha mãe.
Ela estava feliz. E dançava bem bonita em seu vestido
vermelho de flores amarelas. Tínhamos uma vida nova
em Maricá, eu, minha irmã e minha mãe. Essa enxurrada
de pronomes possessivos é porque sou taurina e sofro
de apego, ciúme e posse. Lá morávamos numa casa na
beira da estrada, que era ainda de terra. O bairro se
chama Serra do Lagarto. Éramos vizinhos de parede e
meia com minha tia Mara José, irmã mais velha de minha
mãe, viúva e com seus quatro fi lhos, que se mudara
para Maricá após o tio Lino morrer. Essas casas haviam
sido uma antiga mercearia e deram muito trabalho para
serem transformadas em residência.
Não muito distante, no caminho do rio, que sempre fora a
principal atração nas visitas a família nas férias, morava
minha avó numa casa que fi cava no alto de um pequeno
morro. Mais tarde, já adulta, quando visitava o lugar,
percebi que era uma casa normal, mas na infância via
a casa de minha avó como um lugar muito grande e com
seu enorme quintal no alto daquele morro. Não é difícil
para uma criança de 4 anos perceber tudo grandioso.
Com minha avó, que se chama Judite Flor de Maio, assim
mesmo sem sobrenome de família (coisas de Minas),
morava minha tia Maria da Conceição, a mais nova das
meninas e, por isso chamada por todos de Neném —
para nós, tia Neném. O caçula da família era o tio Marco,
e meu avô, Geraldo, foi quem escolheu esse nome pra ele
e também de todos da família, incluindo mãe e avó, que
ele mesmo registrou ao chegar em Niterói nos anos 1960.
O sobrenome que ele deu à família foi Ascendino Braga.
Meu avô era uma fi gura incrível e tinha sempre uma voz
firme ao se apresentar como Geraldo Ascendino Braga.
Havia escolhido esse nome porque em Minas tinha uma
família muito poderosa de nome Braga e ele achava
bonito. A nossa família Braga começa em meu avô, que
para nós era tão importante quanto qualquer político.
Em Maricá, ele ganhara fama após construir metade dos
prédios do centro, a Prefeitura e muitas casas nos arredores dali. Fez também a sua parte ao trazer de Minas muitas famílias, empregando homens em suas empreitadas de obra ou de roçado. Todos com o mesmo sonho
dele: ganhar a cidade grande a fim de dar oportunidade melhor aos filhos. Lembro de um desfile de aniversário da cidade, que meu avô vinha no caminhão da Prefeitura e recebia do prefeito de Maricá a chave da cidade, sendo nomeado cidadão maricaense. Nós ficamos muito importantes nesse dia.
Em Maricá, tinha uma rotina gostosa. De manhã frequentava a escola e à tarde estava livre. Minha avó, que é por todos os netos, chamada de vovó Nasica, ficava em casa com a gente e fazia as coisas da casa além de costurar para fora. Ela era vez por outra muito severa, mas fazia o
melhor mingau de fubá com pedacinhos de queijo minas que já comi. Ao escrever essas palavras, minha boca se enche de água e posso até sentir o cheiro do leite queimado na leiteira enquanto a vó mexia o mingau. Adorava raspar aquelas leiteiras! Era a primeira a correr para a
janela quando uma chuva estava se armando e fi cava ali esperando ela chegar e varrer os pastos. Tinham três janelas na sala e cada grupo de netos ocupava uma, os últimos a chegar se acotovelavam querendo garantir um espaço.Quando estava apenas eu, minha vó e minha irmã, cada uma ocupava uma janela. Depois de algum tempo de chuva sempre ia me abrigar na janela da Martha com a desculpa de que estava com frio, mas ela sabia, como boa irmã mais velha, que era mesmo saudades da minha mãe. Abraçava-me e se a barra pesava para ela também, propunha um jogo da memória ou uma adedanha. Até hoje quando chove adoro me debruçar na janela para ver a chuva quando vem se aproximando de longe. É uma imagem linda. Havia dois dias na semana que todos os netos fi cavam com a minha avó. Nós, os filhos da tia Maria José — Ana
Márcia, Rosana Lúcia, Sandro Mauro e Adriana Maria — e os da tia Cacá (Maria das Graças) — Gérson, Gisele, Jesiléia, Jesilene e Marilene. Esta foi a primeira geração
de netos dos meus avós, e fomos criados como irmãos. A tia Cacá faz até hoje, em seu fogão de lenha, as melhores rosquinhas fritas e o melhor requeijão duro que já comi. Na minha época de criança, ela morava em uma fazenda, que nos abrigou em muitos fins de semana. Era quando minha tia preparava o requeijão cozinhando em enormes tachos e precisava de muita prática para receber as bolinhas de queijo quente nas mãos. Ficávamos ali rodeando todo o processo de feitura, que demorava. Íamos e voltávamos até que o requeijão estivesse em ponto de puxa-puxa. Esticávamos as mãos um a um, tínhamos que rapidamente passar de um lado a outro para esfriar,
fazíamos bolas de queijo e comíamos. Posso, em dias saudosos, sentir o cheiro delas.
Na casa da minha avó, quando estávamos todos juntos, eram os dias de hospício. Esperávamos a hora do sono da tarde da vovó para aprontarmos todas, o que muitas vezes resultava em surra ou castigo ou os dois dependendo do tamanho da falta cometida. Durante a semana, a saudade da mãe era confortada por muitas brincadeiras e a deliciosa sensação de liberdade da roça. Mas eu aguardava a sexta-feira como se aguarda dia de festa. Duvido alguém me pôr para dormir antes
de subir o último ônibus que normalmente trazia minha mãe. Às vezes acontecia dela perder esse ônibus e depender de lotação, táxi ou mesmo de ir a pé. Nesses casos, eu acabava cochilando, mas ao ouvir sua voz chegando a casa, era a primeira a levantar e ir correndo saudá-la. Abraçava e beijava, ela já muito cansada, e ainda sempre vinha à clássica pergunta:
— Trouxe o quê pra mim?
Ela sempre trazia na bolsa caramelo ou bala de goma colorida, que eram devorados por mim a hora que fosse. Sem nenhuma preocupação de escovar os dentes depois.
Nos fins de semana que não eram de meu pai, passeava
na fazenda, tomava banho de rio, brincava com os primos.
Às vezes tinha festa de algum parente e sabia que teria
bolo, fazia compras; eram fins de semana gostosos. Mas
também era nos fins de semana que se catava a cabeça
para verificar se estávamos com piolho, e, caso fosse
constatado que sim, todo aquele procedimento de remé
dio, escovação, pano branco na cabeça, aquela coceira
infernal. Eram os fins de semana de faxina geral, orelha,
umbigo, pé, unha, de revisão nos dentes e nos deveres de
casa. Claro que a mãe tem de se encarregar dessas tarefas que nós achamos chatas e desnecessárias.
Sei também que se ela pudesse escolher, estaria conosco
em um passeio, mas enfim alguém tem de fazer esse trabalho. A mãe sempre fez questão de almoços e cafés da
manhã fartos e com todos à mesa e de fazer pão doce e
bolinhos de chuva em formato de letras onde eu podia
escrever meu nome antes de comer. Minha mãe arrumou logo um namorado, e alugaram uma casa distante
da casa da minha avó e passamos a ir para lá nos fins
de semana. Gostava muito de ir para essa casa onde eu
e Martha tínhamos um quarto, que podia me relacionar com minha mãe sem interferência dos meus avós.
Ganhava durante os fins de semana uma rotina com a
minha família normal. Foram quatro anos de muitas
aventuras e descobertas.
Fui matriculada e comecei a ir à escola. Era a primeira a
acordar. Enquanto a Martha estava escovando os dentes, já tinha tomado o café e me apressava até a casa
de meus primos muitas vezes para acordá-los, e algumas vezes era eu quem impedia o ônibus de ir embora,
já que se isso acontecesse só haveria outro três horas
depois. Seu Liba era o nome do motorista que mesmo
sendo muito legal de nos esperar para nos levar a escola,
não escapava de nossa chacota por ser o motorista mais
mole que já conheci: “Seu Liba não é capaz de botar o
cento e vinte, lá vai, lá vai, lá vai dos quarenta ele não
sai.” Era a nossa diversão preferida na volta da escola,
ficar no fundo do ônibus cantando isso para ele.
A escola fi cava na cidade. Meia hora de ônibus de onde
morávamos. Ana Márcia, minha prima mais velha, era a
responsável por levar todos nós à escola. Muitas vezes
perdíamos o ônibus para voltar e não podíamos esperar três horas. Então marchávamos a pé para casa pela
estrada de terra. Com sorte, passava um motorista
conhecido e nos levava. Algumas vezes pararam carros
quem nunca tínhamos visto e nós nos certificávamos se
era seguro perguntando se o motorista conhecia o vovô
Geraldo e, se ele respondesse que sim, pegávamos a
carona tranquilamente. Graças a Deus todas as vezes
foram pessoas de bem e nunca aconteceu nada com
nenhum de nós.
Em Maricá, passamos por uma enchente. Quando a
chuva começou, estavam somente as crianças em casa,
brincando na casa de uma das tias. Tinha uma prima com
coqueluche e arrumamos uma briga, o que fez metade
do grupo sair em direção a casa da vó. Estava nesse primeiro grupo, e tivemos muita dificuldade de subir a rua,
porque a água em mim, que era a menor, já atingia quase
a cintura. Meus primos, Sandro e Rosana, ao nos deixar
na casa da vó, mesmo após a briga, acharam por bem
voltar e ajudar os outros a saírem da casa, que ao contrário da casa da vó fi cava em uma parte baixa.
Eles desceram e nós ficamos apreensivos até que voltassem, muito molhados e carregando a Lelene, que
estava com coqueluche, enrolada em uma cortina de
banheiro. A partir daí, começaram a chegar os adultos
e a casa não parou mais. Grupos de homens liderados
pelo meu avô saíam a todo momento para ajudar mais pessoas a saírem de suas casas. Era uma sexta-feira e, mesmo tendo sido colocada para dormir, os olhos não fechavam, acompanhava toda aquela movimentação e rezava quieta pela chegada de minha mãe, que se deu já na madrugada, contando que teve de atravessar o rio amarrada em uma corda, porque a ponte havia sido levada pela força da água. No dia seguinte bem cedo, a chuva tinha passado, e fomos levados pela minha avó para ver o tamanho dos estragos.
A vó Nasica era uma espécie de “Repórter Esso” — noticiário histórico do rádio e da televisão brasileira. Gostava de saber tudo que se passava a sua volta. Uma vez lhe contaram que um homem havia se enforcado do outro lado do rio. Era final de almoço. Ela trocou de roupa e nos ordenou que calçássemos os chinelos para sairmos. Foi uma caminhada longa. Quando chegamos, demos de cara com um homem negro, de aproximadamente 40 anos, pendurado ainda na árvore com a língua muito roxa e inchada para fora e uma cueca vinho saco de batata.
Assim que ela chegou, percebeu que não poderia ter ido até lá com aquela criançada toda e começou a mandar a gente voltar. Demos a volta assim que ela conseguiu nos afastar daquela cena e começamos a caminhar de volta para casa. Ninguém falou nada sobre o assunto, principalmente com meu avô; era nosso segredo com a vovó.Essa cena está em um de meus roteiros. Esse é o melhor momento. O de aproveitar suas histórias, suas experiências, para contar outras histórias. Maricá está em muitas das histórias que ainda desejo contar. Aliás, minha
família mineira já é por si uma história, minhas tias são do tipo que contam as desgraças da vida e todo mundo ri. Pessoas maravilhosas de quem herdei em especial a generosidade e o gosto por contar histórias.Eu e Martha, por conta de nossas viagens quinzenais ao Rio, e o fato de nosso pai morar lá, éramos as cariocas e enchíamos a boca para falar isso. A cada quinze dias trazíamos uma novidade quando visitávamos meu pai. Nós fazíamos passeios que nenhum de nossos primos nem as outras crianças da cidade estavam acostumados. Muitas vezes faziam roda para escutar as experiências vividas em um praia ou em uma sessão de cinema, coisa que em Maricá não tem até hoje.A minha infância, principalmente dos 4 aos 8 anos, foi uma época crucial na minha formação. Foi quando aprendi a falar, o que justifica ter um “s” mais acentuado do que o normal dos cariocas, pela interferência da família mineira. Também foram os anos em que me alimentei de muita brincadeira, que na roça não tinha limites. Quando nos mudamos, todas as vezes que íamos a Maricá em visita, todos faziam questão de nos apresentar como as primas do Rio. Depois que comecei a trabalhar com teatro e tive participação em novelas e filmes, quando chegava lá, passei a ser apresentada como a artista da família. É difícil fazer as pessoas entenderem que você apareceu em uma novela, mas não necessariamente você trabalha na Globo, ou que você não está em novela nenhuma e mesmo assim é atriz. Mas a gente vai levando. Não foi fácil sair de Maricá. Estava acostumada com a proximidade da família, tinha amigos, estava bem adaptada a
uma escola. Mas minha mãe decidiu que deveríamos nos mudar. Gosto de voltar a Maricá até hoje, mas a cidade me passa a sensação de que parou no tempo. Minha mãe estava certa quando nos mudamos de lá.
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